Há exatos 40 anos, Ney Matogrosso fazia o primeiro show da história do Rock in Rio, no mesmo dia em que Whitesnake, Iron Maiden e Queen também se apresentaram no palco do festival. Erasmo Carlos e a dupla formada por Baby Consuelo e Pepeu Gomes completariam o lineup brasileiro daquela sexta-feira de 11 de janeiro, na antiga Cidade do Rock, montada na zona oeste do Rio de Janeiro.
O público formado por muitos roqueiros e metaleiros não aceitava muito bem a mistura de estilos e julgava que as atrações brasileiras não tinham muita relação com o festival, que seria voltado para o rock. Essa controvérsia, iniciada já na primeira edição, persiste até hoje, reacendendo debates a cada lineup anunciado pela organização.
Naquele 11 de janeiro, Ney Matogrosso enfrentou hostilidade logo na primeira música de sua apresentação, “América do Sul”, sendo recebido com um ataque de ovos cozidos.
“Eram centenas de milhares de pessoas… Umas 10 pessoas começaram a jogar ovos cozidos, com a casca. E eu chutava de volta em cima deles. Eu que não vou levar desaforo, né? Queria estar representando um pensamento dentro daquilo”, relatou Ney no documentário “Rock in Rio – A História”.
O Tremendão Erasmo Carlos (1941-2022), um dos maiores expoentes do rock nacional, também não escapou das críticas e foi vaiado. “Ninguém sabia que existiam tribos [de metaleiros] naquela ocasião. Foi um erro da produção e dos artistas, de reunir todos os gostos num dia só”, comentou ele no documentário “Erasmo 80”, lançado em 2021.
Pepeu Gomes, guitarrista dos Novos Baianos, foi alertado por Erasmo sobre o clima hostil da noite. Decidiu, então, ajustar o setlist de sua apresentação ao lado de Baby Consuelo, sua esposa à época, que estava grávida de sete meses. As mudanças surtiram efeito, garantindo que o show deles fosse bem recebido pelo público.
Situações semelhantes às enfrentadas por Ney Matogrosso e Erasmo Carlos voltaram a ocorrer em edições posteriores do Rock in Rio, envolvendo artistas brasileiros como Lobão, em 1991, Carlinhos Brown, em 2001, e as bandas NX Zero e Glória, em 2011. Em todos esses casos, o público predominante era formado por fãs de rock e metal.
Parte desse público, até hoje, sustenta o argumento de que o Rock in Rio deveria ser exclusivamente dedicado ao rock e seus subgêneros, uma posição fundamentada no próprio nome do festival, escolhido por Roberto Medina em sua criação. Em uma entrevista à revista Veja, o fundador e presidente da Rock World, empresa responsável pelo Rock in Rio, reforçou que o festival nunca teve a intenção de se restringir a um único estilo musical.
“Tem uma lenda lá atrás que era muito comum ouvir: ‘Ah, mas o Rock in Rio era mais rock quando começou. Agora é pop. É isso, é aquilo’. Nunca foi mais rock. Rock in Rio nasce com um espírito transversal porque já nasce pensando em se viabilizar para 1,5 milhão de pessoas. Eu não poderia falar com nicho nenhum. Tinha que ser transversal do ponto de vista de idade e faixa etária. Eu tinha que ser transversal também na entrega da música. As tribos tinham que estar ali naquele evento. O Rock in Rio começou com jazz, com Al Jarreau e George Benson, com country music, com James Taylor, com forró, axé, new wave, heavy metal, pop e rock. Essa era a proposta. O rock era uma bandeira que acolhia os diversos estilos musicais. Sempre foi assim e continua sendo”, afirmou.
Carlinhos Brown no show ‘Pra Sempre MPB’ no palco Mundo no Rock in Rio, no Parque Olímpico, na zona oeste do Rio | Beatriz Azevedo – 21.set.2024/DivulgaçãoOs argumentos são válidos ao considerarmos 546 shows realizados nos palcos principais do festival ao longo de suas 10 edições no Brasil, já que ele chegou a Las Vegas, Madri e Lisboa, onde se mantém até hoje. Na estreia do evento, por exemplo, 26 das 54 atrações pertenciam aos gêneros rock ou metal (48,1%), enquanto 16 representavam a MPB (29,6%), seis eram de pop (11,1%), quatro de jazz (7,4%) e duas de folk (3,7%).
O auge da presença roqueira no festival ocorreu em 2001, quando 23 (56,10%) das 41 apresentações realizadas no palco Mundo foram dedicadas a estilos como rock, metal e nu metal, entre elas Iron Maiden, Red Hot Chili Peppers, Guns N’ Roses, Oasis, Neil Young, Silverchair e Queens of the Stone Age.
Pop (24,4%), MPB (12,2%), folk (2,44%), música clássica (2,44%) e axé (2,44%) eram os outros segmentos musicais daquela edição que tinha como tema “Por um Mundo Melhor”, mas acabou sendo marcada também pelas hostilizações a Carlinhos Brown, vaiado, xingado e alvejado com os mais variados objetos por fãs de Oasis e Guns N’ Roses durante a sua apresentação.
O mais surpreendente do episódio histórico foi a postura do músico baiano que, além de fazer todo o seu show, manteve uma postura pacifica. “Eu só jogo amor, não jogo nada em ninguém. Podem jogar o que vocês quiserem porque eu sou da paz e nada me atinge”, disse ao público enquanto milhares de garrafas de plástico eram arremessadas contra ele.
Ainda assim, antes de deixar o palco, mostrou com alguma elegância que não tem sangue de barata. “Vocês que gostam de rock, vocês têm muito o que aprender na vida. Tem que aprender a respeitar o ser humano, dizer não à violência e a dizer sim ao amor. Acreditem na vida. Agora, o dedinho podem enfiar no traseiro”.
Ao contrário do que muitos dizem que o cantor teria sido mal escalado num dia voltado ao rock, o próprio Brown entende que ele deveria estar ali naquele momento, conforme afirmou em entrevista à Rolling Stone do Brasil, em 2021, duas décadas depois do episódio.
“A minha compreensão é que aquele momento se firmou como necessário para que nos refizéssemos, cada um alí presentes, e simbolicamente também, pois um artista sonha com grandezas e guardei em mim a gratidão por ter sido eu a exercer aquela função, naquele momento de choque. Alguma daquelas garrafas me pegou como um trem-bala e me arremessou a espaços jamais vistos. Falo com gratidão, pois ambos –eu como artista e o público–, precisávamos deixar alí certas fraquezas, que enrijecem o aprendizado de encontrar caminhos mais positivos para a convivência das diversidades no nosso país”, refletiu.
Já a edição com menor representatividade de rock e subgêneros foi a mais recente, em 2024, onde apenas 11 (19,6%) dos 56 shows realizados nos palcos Mundo e Sunset pertenciam a essas categorias musicais. O restante do lineup (80,4%) foi composto por outros 11 estilos, entre eles, o pop (39,3%), o hip-hop (16,1%) e a estreia do sertanejo com o show em homenagem ao gênero feito em conjunto por Chitãozinho & Xororó, Orquestra Heliópolis, Ana Castela, Júnior Lima e Simone Mendes.
É interessante notar que a redução mais brusca no percentual de shows de rock, ocorrida em 2022, acompanhou o crescimento mais vertiginoso do hip-hop, estilo que tem na contestação e na rebeldia similaridades com o rock. Nos últimos tempos, até as famosas rodas punk dos shows mais pesados passaram a ser incorporadas pelo público do rap e trap, por exemplo, como foi visto na última edição no show do americano Travis Scott.
O hip-hop apareceu pela primeira vez na história do Rock in Rio na segunda edição, em 1991, quando o festival foi realizado no Maracanã. Naquela ocasião, o Run-D.M.C., de Nova York, se apresentou ao lado de nomes como New Kids on the Block e Roupa Nova, o que provava mais uma vez que a marca do festival sempre foi a diversidade musical.
Ao longo de sua história, apenas 17 de 546 shows dos palcos principais do festival foram feitos por artistas de hip-hop. Foram 20 anos até Marcelo D2 apresentar o estilo pela segunda vez no Rock in Rio. Depois disso, mais oito anos até Drake ser headliner em 2019, no palco Mundo, e Rincon Sapiência, Rael, Baco Exu do Blues, Agir e Nova Orquestra se apresentarem juntos no Sunset.
A situação começa a mudar realmente em 2022 quando Racionais MC's e Emicida foram escalados para shows no palco Sunset. Naquela edição, o trapper Matuê e a rapper americana Megan Thee Stallion também representaram o estilo no evento. Já em 2024, o hip-hop e suas vertentes tiveram sua maior representação, com nove (16,1%) dos 56 shows realizados.
Outro dado que evidencia a diversidade de atrações como uma das principais marcas do festival é que em 10 edições, atrações de pelo menos 26 gêneros musicais já passaram pelo Rock in Rio. O número pode ser ainda maior se incluirmos no levantamento os palcos secundários, como Espaço Favela, New Dance Order, Supernova, entre outros, que ficaram fora do trabalho realizado para esta matéria.
Levando em conta apenas os shows nos palcos principais, que passa a ter o Sunset a partir de 2011, o pop e o rock estão empatados com 147 (26,9%) shows cada. Em terceiro lugar, corroborando ainda mais com a pluralidade musical, estão as 96 (17,6%) apresentações realizadas com mais de um artista no palco, como Sepultura e Zé Ramalho, em 2013, Tulipa Ruiz e Nação Zumbi, em 2011, e Iza e Alcione, em 2019, entre outros.